Fotografia de Capa cedida por Rui Ribeiro
Rui Ribeiro é natural do Alentejo e apaixonado por montanhas, trilhos esquecidos e pelo Portugal mais selvagem.
Praticante de montanhismo, caminhada em autonomia e bikepacking há mais de 25 anos, Rui fez das suas paixões um modo de vida. Licenciou-se em Engenharia Biofísica com foco na Gestão de Ecossistemas e Implementação de Percursos na Natureza e é, desde 2014, consultor outdoor, especializado em criação de rotas e experiências turísticas sustentáveis.
Co-organizador da primeira prova de ultra distância gravel portuguesa, A Gravel Birds, onde é responsável pelo desenho dos diferentes percursos disponíveis, é também o mentor do projeto Portugal Outdoor que mais não é do que “um convite a descobrir o mundo que começa mesmo à porta de casa.”
Portugal Outdoor é um projeto, criado para quem gosta de caminhar, pedalar, acampar e explorar de forma consciente e sustentável. Um espaço onde o visitante pode encontrar rotas, dicas de outdoor, revisões de equipamento e muito mais. Tudo de acesso gratuito e livre.
Esclarecimento – O Gravel é uma modalidade de ciclismo que fica a meio caminho entre o Ciclismo de Estrada e o Ciclismo de Montanha. A bicicleta, sendo muito parecida à bicicleta de estrada, incorpora características mecânicas e de geometria (desenho do quadro e largura dos pneus entre outras) que a tornam mais eficiente em percursos de estrada não asfaltada que não são tão técnicos (acidentados) como os percursos de montanha onde circulam as bicicletas de BTT (MTB) ou os percursos de ciclocross.
A bicicleta de gravel é uma bicicleta polivalente, que privilegia o conforto em detrimento da performance e que se adequa a provas de longa distância e ultra-longa distância com percursos mistos.
Sekreta – Em breves palavras, o que é o Bikepacking?
Rui Ribeiro – O bikepacking é a arte de viajar de bicicleta de forma autónoma, leve e minimalista, combinando a liberdade do ciclismo com o espírito de aventura do backpacking. É uma forma de explorar trilhos remotos, estradas secundárias e paisagens esquecidas, transportando apenas o essencial para dormir, comer e navegar.
Mais do que uma modalidade, é uma filosofia de viagem que valoriza a simplicidade, a ligação ao território e o respeito pela natureza. Em Portugal, temos um país extraordinário para o bikepacking: diverso, seguro e com uma rede de caminhos que atravessa serras, planícies e aldeias com séculos de história.
No Portugal Outdoor, partilho rotas, dicas e inspiração para quem quer começar ou aprofundar esta forma de viajar. Acredito que não é preciso ir longe para viver uma grande aventura — às vezes, basta sair de casa e explorar o mundo à nossa porta.
Sekreta – O que se pode, ou deve, fazer para implementar o Bikepacking entre os portugueses e levá-los a explorar mais dentro de portas?
Rui Ribeiro – O primeiro passo é mudar a perceção de que é preciso ir para longe para viver algo memorável. Portugal é um verdadeiro paraíso para o bikepacking: diverso em paisagens, rico em cultura e com um clima que convida à aventura o ano inteiro.
O bikepacking tem tudo para crescer se o virmos como uma comunidade e não como uma competição
Rui Ribeiro
Precisamos de mais informação acessível, rotas bem desenhadas e conteúdos que mostrem que é possível viajar de forma simples, económica e sustentável — e é exatamente isso que procuro fazer com o Portugal Outdoor. Mostrar que há alternativas ao turismo de consumo rápido e que qualquer pessoa, com uma bicicleta e vontade, pode partir à descoberta.
Outro fator importante é a criação de uma cultura de partilha e entreajuda — de quem desenha rotas, testa material, ou dá dicas logísticas. O bikepacking tem tudo para crescer se o virmos como uma comunidade e não como uma competição.
E, claro, é preciso que as entidades públicas e privadas reconheçam o valor económico e social deste tipo de turismo, apoiando quem cria e promove experiências autênticas no território.
Sekreta – O preço das bicicletas, do material para transporte, do equipamento necessário para realizar uma viagem e dos alojamentos, ainda é um entrave para o Português comum se lançar no Bikepacking?
Rui Ribeiro – Pode ser, sim — mas não tem de ser!
É verdade que há bicicletas e equipamentos com preços elevados, mas o bikepacking não tem de começar com um grande investimento. A beleza desta prática está precisamente na simplicidade. Com uma bicicleta fiável (mesmo que antiga), uns alforges improvisados ou um setup básico, já é possível fazer uma viagem memorável.
O que importa é o espírito de aventura, não o valor do equipamento.
Muitas vezes, as experiências mais ricas acontecem fora dos roteiros habituais e quando damos espaço para o improviso.
Rui Ribeiro
Felizmente, há cada vez mais oferta de material específico para bikepacking com uma ampla gama de preços, e também mais lojas e oficinas especializadas que oferecem aconselhamento e apoio técnico a quem quer começar — o que faz toda a diferença para quem está a dar os primeiros passos.
Quanto ao alojamento, o bivaque responsável e os parques de campismo continuam a ser excelentes opções económicas. E, muitas vezes, as experiências mais ricas acontecem fora dos roteiros habituais e quando damos espaço para o improviso.
No fim de contas, o verdadeiro luxo do bikepacking é a liberdade.
Sekreta – Feita uma pesquisa na web, verificamos que existe muita informação dispersa, não só acerca de percursos, como dos materiais e preparação (física e técnica) para os fazer. O espaço Portugal Outdoor pretende ser um aglutinador dessa informação? Sente que há uma espécie de “concorrência” que leva cada um a “remar para o seu lado” quando podíamos (devíamos) estar todos a trabalhar para o mesmo objetivo?
Rui Ribeiro – Sim, o Portugal Outdoor nasceu precisamente dessa vontade de reunir e partilhar informação de forma acessível, prática e livre — mas, entretanto, a ideia evoluiu. Quando criei o projeto, os objetivos ainda não estavam bem definidos e fui seguindo o caminho natural. Agora, ao repensar e atualizar todo o projeto, virei o foco para a comunidade — e acredito que esse seja mesmo o caminho certo.
Os recursos online são muitas vezes confusos e incompletos, especialmente os canais “oficiais” dos promotores das rotas.
Quantas vezes só temos um PDF desatualizado, sem qualquer track GPS ou informação útil para quem está realmente no terreno?
Nos últimos anos, surgiram algumas boas iniciativas, como o Portuguese Trails, do Turismo de Portugal, mas sinto que estas plataformas falham na abordagem e não conseguem criar ligação com a comunidade.
Mais do que listar rotas e disponibilizar informação, acho que falta dar palco à comunidade outdoor nacional, promover as suas iniciativas e dar visibilidade aos muitos projetos que vão nascendo, muitas vezes de forma independente e apaixonada.
Já sentimos esse impacto em muitas localidades por onde a rota passa (…) até autarquias que começam a olhar para o ciclismo como uma oportunidade real de desenvolvimento sustentável.
Rui Ribeiro
O Gravel Birds foi o primeiro evento do género em Portugal, mas felizmente já não estamos sozinhos: temos o The GOATS, que se tem revelado um sucesso internacional, e no ciclismo de longa distância em asfalto há projetos como o Heading Southwest, o At Last Lost ou o Lisboa 312 — todos eles feitos pela comunidade, para a comunidade.
Acredito que apoiar quem está no terreno e criar sinergias é o verdadeiro caminho para alavancar o setor outdoor em Portugal.
Quanto à “concorrência”, acredito sinceramente que o outdoor não é uma corrida. O que faz sentido é colaborarmos, partilharmos conhecimento, e mostrarmos a riqueza e diversidade que Portugal tem para oferecer. Só juntos conseguimos construir uma cultura outdoor forte, enraizada no território e acessível a todos.
Sekreta – O Projeto Gravel Birds pode contribuir para o desenvolvimento semelhante das regiões/populações por onde passa. De que forma pretendem atingir esses objetivos? Onde é que já chegaram e o que é que ainda falta alcançar?
Rui Ribeiro – O Gravel Birds foi pensado desde o início como muito mais do que um evento de ultra distância. Quando desenhei a rota, o meu propósito sempre foi contar uma história — levar as pessoas a descobrir o verdadeiro Alentejo, não apenas o dos postais, o das praias ou da paisagem esbatida que se vê da janela do carro enquanto se cruza a A2 rumo ao Algarve.
Antes do Gravel Birds, trabalhei alguns anos como consultor outdoor, a criar rotas pedestres ou cicláveis como quem “enche chouriços”. Era uma tarefa essencialmente técnica e desprovida de alma, sem recursos nem liberdade criativa para fazer melhor. Já na criação da rota do Gravel Birds tive liberdade total — e creio que ficou bem provado que se pode fazer muito mais e melhor, mesmo sem recursos milionários.
É essa autenticidade que tem feito a diferença, atraindo cada vez mais gente ao território — seja durante o evento, seja de forma espontânea ao longo do ano. E claro que já sentimos esse impacto em muitas localidades por onde a rota passa: os habitantes perguntam quando é a próxima edição, há cafés que abrem mais cedo, alojamentos que se adaptam ao perfil dos participantes, e até autarquias que começam a olhar para o ciclismo como uma oportunidade real de desenvolvimento sustentável.
Mas ainda há muito por fazer. O nosso objetivo é reforçar essa ligação ao território, criar parcerias locais mais fortes e envolver ainda mais a comunidade — não apenas como recetora, mas como parte ativa do evento. Isso passa por envolver produtores locais, escolas, associações, etc. Mas é um trabalho que só conseguiremos desenvolver com o tempo, porque a nossa organização é muito pequena: somos apenas três amigos que se lançaram neste desafio e que o vão concretizando ano após ano com a ajuda de muitos outros amigos e voluntários.
No fundo, queremos que o projeto ajude a contar as histórias dos lugares por onde passa. E que deixe uma marca positiva no território, nas gentes locais e nos que nos visitam.
Rui Ribeiro
A zona de Sintra e Cascais, nomeadamente o Parque Natural de Sintra-Cascais, tem um grande potencial no que respeita a trilhos e percursos com todos os tipos de exigência, seja o BTT, o Gravel ou Estrada. Também é uma zona turística por excelência frequentada por muitos praticantes de ciclismo e, nesse sentido, com excelentes condições para o desenvolvimento de provas/percursos que possam ter início e/ou término em Cascais.
Sekreta – Tem conhecimento de algum projeto que vá nesse sentido? Considera a conceção de uma prova de ultra-maratona com partida e chegada a Cascais que explore a zona costeira do Oeste e as Serra de Sintra, Serra de Montejunto e Serra de Aires e Candeeiros, um projeto viável?
Rui Ribeiro – Não conheço bem a região para poder dar uma resposta mais concreta, mas creio que seja um território com enorme potencial — em particular por estar às portas de Lisboa e ter uma combinação rara de costa, serra e património cultural.
No entanto, não é o meu foco. Apesar de ter crescido no litoral, há muitos anos que me mudei para o interior — e é aqui que quero centrar os meus esforços. Acredito profundamente que o desenvolvimento do interior passa, em grande parte, pelo turismo outdoor aliado à conservação e à renaturalização dos ecossistemas. Talvez seja essa a única forma de o “resto” do país se libertar das amarras do centralismo político e económico e encontrar um rumo verdadeiramente sustentável.
Quem sabe até se consiga, assim, travar a praga das celuloses, que usam e abusam do território precisamente por não existir uma massa crítica com literacia social e ambiental para se opor a isso de forma consciente.
É aqui no interior que sinto que o meu impacto pode ser mais transformador.
Claro que vejo com bons olhos qualquer iniciativa que promova um contacto mais profundo com o território — seja no litoral ou no interior — desde que seja feita com respeito, consciência ambiental e ligação às comunidades locais. Uma prova com partida e chegada em Cascais, explorando toda a riqueza natural e cultural da zona Oeste e das serras adjacentes, pode ser um excelente projeto. Mas o verdadeiro desafio será sempre fazê-lo com sensibilidade e autenticidade.
Sekreta – Considera que o receio que muitos ciclistas (e respetivas famílias) têm em andar nas estradas de Portugal é um entrave ao desenvolvimento deste tipo de atividade? Que ações poderiam ser desenvolvidas para mudar os comportamentos que uns e outros adotam quando circulam em espaços comuns?
Rui Ribeiro – Sem dúvida! A insegurança nas estradas é um dos maiores entraves à prática do ciclismo em Portugal — seja como meio de transporte, atividade desportiva ou lazer. E não é apenas um “receio”, é infelizmente uma realidade bem documentada: atropelamentos frequentes, falta de respeito pelo espaço do ciclista e uma cultura rodoviária centrada exclusivamente no automóvel.
É um problema estrutural, mas que também exige uma mudança cultural profunda — tanto de quem conduz como de quem pedala. Precisamos de campanhas sérias de sensibilização, fiscalização eficaz e, acima de tudo, de infraestruturas pensadas para uma convivência segura entre todos os utilizadores da estrada.
O que falta é uma visão clara de que o ciclismo deve ser parte da solução — para a mobilidade, para a saúde pública, para o turismo sustentável. E isso implica investir em redes cicláveis contínuas, formação desde a escola, e campanhas que cultivem empatia e responsabilidade partilhada.
Curiosamente, muitos dos que têm medo de pedalar nas estradas são os mesmos que, ao volante, não sabem lidar com quem pedala. Há um enorme trabalho de base por fazer. Mas acredito que, com tempo, educação e bons exemplos, podemos transformar essa relação. Espanha seguiu esse caminho — e basta atravessar a fronteira para notar a diferença no respeito que os condutores têm quando se cruzam com alguém numa bicicleta.
O gravel e o bikepacking têm aqui também um papel relevante — ao levarem-nos para fora das estradas principais, para caminhos mais tranquilos, onde o contacto com o território é mais humano e o risco é menor. Mas mesmo nesses caminhos, o respeito e a partilha têm de estar sempre presentes.
É com sentido de gratidão pela partilha, trabalho e paixão empenhados que a Sekreta Magazine publica esta entrevista.
Ao Rui Ribeiro e restantes companheiros de aventuras, o nosso carinho e muito obrigado pelo trabalho que estão a desenvolver.
João Lamares