por João Aníbal Henriques
Em vésperas de se comemorar o 184º aniversário da Freguesia de Alcabideche, importa recordar, envolta naquela neblina onírica que desce dos contrafortes da Serra de Sintra, a ancestral origem destas terras excecionais.
Perdida algures entre o azul forte do mar, embalada pelo fragor da rebentação das ondas do Atlântico nas penedias escorreitas das suas falésias, e o verdejante relevo que acompanha a fertilidade inspirada das nascentes que sussurram através dos seus vales ubérrimos, a Freguesia de Alcabideche não tem uma data que possamos tomar como marca efetiva da sua origem histórica.
De facto, a riqueza da terra e a prosperidade que o mar lhe consagra terá sido o mote para que a ocupação deste território se prolongue ininterruptamente desde o início dos tempos. Quando os primeiros homens se instalaram neste recanto encantado, o atual território de Alcabideche foi certamente a opção para muitos, como o atestam efetivamente os vestígios arqueológicos que nos permitem perceber essa ancestral origem humana neste espaço.
Não se pense, no entanto, que foi sempre fácil e paradisíaca a vida por estas paragens. Pelo contrário. A principal marca de Alcabideche, bem visível nas mãos calejadas dos agricultores, horticultores, pescadores, pastores e canteiros que ao longo destes últimos 184 anos têm marcado o devir municipal de Cascais, é o muito trabalho e os muitos problemas que desde sempre tem sido necessário enfrentar e vencer para que se cumpra aqui o desiderato de bem viver.
Porque como disse Abu Zayd’Abd ar-Rahmãn ibn Muqãna, o mítico e emblemático poeta árabe que cantou Alcabideche há já mil anos, mesmo quando a terra produz muito e bem, descem da serra os javalis que tudo comem e destroem. Referia-se ele, de forma encapotada, aos cobradores de impostos e aos desafios naturais que a freguesia sempre enfrentou… como se a pujança que resultava do trabalho árduo de quem por aqui vivia, fosse gerador de invejas que condicionam o dia-a-dia atroz do género humano. Como em todo o lado onde o esforço e o trabalham geram riqueza!
Mas a principal marca de Alcabideche, que o avoengo poeta de boa memória fez questão de sublinhar na sua obra grandiosa, é a do vento que sopra inclemente das faldas sempre vivas do horizonte serrano. Porque é ele que move as velas dos moinhos, gerando a força motriz que faz girar as pesadas mós de pedra, e transformando o grão em pão.
O pão de Alcabideche, alimento privilegiado de toda a população de Cascais, nada mais é do que a mistura do vento frio com o calor da pedra, numa amálgama de sabedoria que mói o grão para produzir a farinha que é cozida nos fornos para se transformar nesse pão que por todo o lado é procurado. E esta tarefa, que caracteriza Alcabideche não só ao longo dos últimos 183 anos, mas que é ritual repetido reiteradamente por estas terras desde há muitos milénios, é a expressão maior da alquimia humana, transmutando a matéria de forma a assegurar que do vento se faz alimento para garantir a todos a força necessária para por aqui prosperar!
Alcabideche é hoje terra de futuro, conservando incólume esta permanente capacidade de se adaptar aos novos tempos e de responder de forma eficaz aos desafios renascidos que vão surgindo a cada novo ano que passa. Mas fá-lo, como se viu na sentida cerimónia religiosa que encheu a Igreja de São Vicente para celebrar esta data, vivendo de forma intensa a memória muito forte que lhe foi legada pelos seus antepassados. E fazendo assim, recuperando as lições dos seus avoengos para com elas planear o caminho a trilhar pelos seus netos, garante que continuará sempre pujante na demanda incessante de qualidade de vida para todos aqueles que escolheram viver neste espaço.
A magia de Alcabideche, que Ibn Muqãna cantou no Século XI e que hoje continua a ouvir-se nas esquinas da freguesia sempre que existem efemérides especiais, é precisamente a de ser capaz de se reinventar permanentemente a partir do seu berço milenar, formatando as suas memórias de forma a cimentar assim de forma consolidada um futuro no qual todos desejam participar.
Está de parabéns a Junta de Freguesia de Alcabideche que irá no próximo dia 22 de janeiro comemorar o 184º aniversário! Está de parabéns Alcabideche por manter viva a sua magia milenar!


